domingo, 12 de fevereiro de 2017

Análise Dos Sambas-Enredo Do Carnaval 2017 - Grupo Especial, Rio De Janeiro

Faltam 2 finais-de-semana para o maior espetáculo da Terra. E é no embalo das canções que chega essa postagem: vamos analisar brevemente os 12 sambas do Grupo Especial para os desfiles de 2017 no Rio de Janeiro.

Estação Primeira de Mangueira. Atual campeã do carnaval, a Verde-E-Rosa novamente será a última escola a desfilar. E virá com um samba bem ao seu estilo: para cima. Literalmente, para cima. Se por um lado o refrão principal soa cansativo ao rimar "Aruanda" com "demanda" e "samba", por outro, há passagens belíssimas como aquela que versa: No peito patuá, arruda e guiné / Para provar que o meu povo nunca perde a fé. É uma composição de muita qualidade e que certamente vai levantar a Sapucaí. Pode botar fé que vai.

Unidos da Tijuca. Não que eu seja favorável a fazer comparações do agora ao que já passou, mas no caso da Tijuca-2017, isso ficou praticamente inevitável. Primeiramente porque a própria agremiação, em 2006, já havia trazido "música" como tema (Wantuir era o intérprete). Outro fator que força a comparação reside no fato de que o samba desse ano me lembrou demais - melodicamente - o de 2014 (homenagem a Ayrton Senna). Samba esse que, entre elogios e críticas, funcionou - e a Tijuca foi campeã. Mas a comparação final é talvez a mais cruel: do ano passado para este, é flagrante a queda na qualidade da composição. De toda forma, por mais que eu não seja fã de pegar o Borel e americanizar (prefiro fazer do Borel a Shangri-Lá, com o perdão de mais uma comparação), eu sempre hei de respeitar uma escola que tem Tinga no microfone e mestre Casagrande na condução da bateria. E eles são tão competentes, que é bem capaz de ajudarem a salvar esse samba na Sapucaí. 

Portela. Quem nunca sentiu um déjà vu se instalar ao ver a Portela sobre rio falar? A águia parece estar escolhendo as águas como habitat natural nos últimos anos. Gilsinho traz bastante suíngue para uma composição simples mas com bastante apelo emocional às raizes portelenses. Salve a Velha Guarda, os frutos da jaqueira / Oswaldo Cruz e Madureira. Agora é aguardar o rendimento do samba na avenida, com a escola tendo como grande trunfo o desenvolvimento do enredo nas mãos do genial Paulo Barros. E por falar em rendimento, ficou muito interessante o desempenho da bateria na primeira estrofe do samba, terreno fértil para bossas e paradinhas. Quem ousa vence!

Salgueiro. O samba de 2017 veio cumprindo a missão de carnavalizar a vida que é feita pra sambar. Aliás, isso vem sendo marca registrada no Salgueiro: sambas sambáveis. Daqueles que, com ou sem o título na apuração na quarta-feira de cinzas, podem ser lembrados numa roda de batuqueiros em outros carnavais. A letra é facil de memorizar - mesmo assim, eu consegui o feito de cantar "devoto dessa tal felicidade" e aprendi hoje, lendo a letra para publicar esse texto, que o verso diz "devoto da infernal felicidade". Enfim, nada que impeça de vislumbrar o paraíso no firmamento. Só entende quem é Salgueiro.

Beija-Flor. Iracema é enredo sob medida para o jeito Beija-Flor de fazer carnaval. E a narrativa do bonito samba não deixa dúvidas de que a escola explorará o modo de vida indigenista, com rituais, aldeias, divindades. Pra fazer de qualquer gringo um mameluco na Sapucaí. Neguinho, patrimônio vivo do carnaval, dá nova aula de interpretação. Há passagens muito interessantes, colocando poesia no romance entre a índia na floresta e o branco apaixonado. Porém, há que se dizer que achei cansativo o refrão principal (talvez fosse mais interessante não usar aquela seqüência de versos como refrão). De toda forma, talvez na avenida essa sensação seja atenuada em relação à gravação do CD. A conferir.

Imperatriz Leopoldinense. O primeiro ponto positivo do samba da Imperatriz foi ter mexido - mesmo que sutilmente - com o status quo. O simples fato de dizer que o belo monstro rouba a terra dos seus filhos / Devora as matas e seca os rios causou reboliço no setor do agronegócio, que vestiu a carapuça no Congresso Nacional e resolver atacar a agremiação. Incrível como a essa altura do campeonato ainda tem quem ouse defender a usina hidrelétrica de Belo Monte. E o que dizer da pecuária, atividade que mais intensifica as mudanças climáticas globais com suas emissões de metano, degradações florestais e tantas outras mazelas? O samba da Imperatriz tem passagens em tom de lamento/apelo e outras em tom de grito de liberdade. Se for cantado em peso pelos componentes, proporcionará belíssimos momentos no carnaval 2017. E que a mensagem seja internalizada. Cantar - e viver - com sentimento é outra coisa. O clamor que vem da floresta não pode ser descartado ao término do desfile e precisa ecoar para muito além do carnaval. Queria ou não o Congresso Nacional.

Grande Rio. Pensa num samba com refrão fácil e pra cima. Pensou Grande Rio 2017. Não é difícil imaginar que vai rolar a festa e que vai levantar poeira quando a escola caxiense passar pela Sapucaí com a Invocada cantando Ivete. E como se não bastasse a letra fácil e o enredo altamente popular, de quebra há ainda dois versos mágicos na arte de "chamar para o refrão": Comunidade, povo do gueto eu sou / Caxias me abraçou. Outro ponto forte é a narrativa em primeira pessoa, que acontece em todo o decorrer do samba - exceto no refrão principal. Enfim, o fato é que se animação fosse quesito, esse samba estaria um degrau (talvez um palco, ou quem sabe um trio elétrico) acima dos demais.

Vila Isabel. É o samba do ano. Como se não bastasse a Vila vir conseguindo sistematicamente encaixar grandes composições com belas interpretações, em 2017 a escola superou as expectativas. Desde sacações geniais como Eu faço um pedido em oração / Ouví-la pra sempre no meu coração até trocadilhos com gêneros musicais, tudo ganha ainda mais beleza na excepcional condução de Igor Sorriso. O povo do samba deve agradecer aos envolvidos nessa obra-prima do carnaval carioca. Valeu, Zumbi, a lua no céu / É a mesma de Luanda e da Vila Isabel.

São Clemente. Depois de ouvir o samba da Vila, o CD do Grupo Especial parte para a São Clemente. E você fica na dúvida se, na verdade, não partiu foi para o Grupo de Acesso (com todo respeito à segunda divisão do carnaval do Rio de Janeiro). Não sei precisar qual o maior erro em "Onisuáquimalipanse" (sim, é esse o título do enredo clementiano). Mas a sensação é de que o caráter descritivista histórico da composição muito mais atrapalha do que ajuda a agremiação. Mas nem tudo está perdido: na Sapucaí, essa história será contada pela Rosa Magalhães. Então, a coisa deve melhorar de figura. Mas o samba em si, sinceramente, acho que não tem salvação.

Mocidade Independente. A Verde-E-Branco da Zona Oeste pode bater no peito e dizer: "temos um samba". Samba para contar o enredo. Samba para levantar o componente. Samba com o selo Wander Pires de qualidade. Samba no embalo da bateria Não Existe Mais Quente. Lembra, pelo menos levemente, o explosivo "O Quinto Império", de 2008. Mas esse de 2017 sobre o Marrocos é mais melodioso e brincalhão. Com direito a Aladin no agogô e tantan nas mãos de Simbad. Padre Miguel tem o direito de sonhar.

União da Ilha. Não se assuste com Macurá dilê no girá, tampouco com Nzambi, Kitembo ou Nzara Ndembu. Sem espantos com a raiz Nzumbarandá, com Katendê, Kiamboté ou Kiuá. Só de boa com Kukuana, Ndandalunda e Kalunga. Também são dos nossos Nzazi e Matamba. Pode não ser tão simples de cantar, mas há muita beleza no samba da Ilha desse ano. Ito Melodia, que é a cara e voz da agremiação insulana, mandou ver mais uma vez com uma firme e encaixada interpretação. E o que temos aqui é algo com aquele astral dos (bons) sambas antigos. Daqueles que lembramos anos adiante. Coisa típica da União da Ilha do Governador.

Tuiuti. A Tropicália está aí, na Tuiuti e no vozeirão do Wantuir. Li e ouvi algumas críticas a esse samba. Sim, há alguns aspectos que poderiam ser melhorados. Mas ele é muito melhor do que dizem e digitam por aí. Rico de conteúdo (talvez tenha pecado pelo excesso) e com algumas passagens melódicas saborosas, sendo a minha preferida a que diz Quanta mistura, intercâmbio cultural. A missão da escola é dificílima: abrir os desfiles num ambiente onde há preconceito com quem vem de baixo e com quem vem primeiro. Isso por si só já causa certa apreensão. Mas raiou o sol, iluminando os versos da canção.
Imagem de divulgação dos sambas-enredo 2017 no Grupo Especial. Safra boa e para (quase) todos os gostos.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Marchinhas Banidas? Trago Soluções!

Está rolando um reboliço por conta de alguns blocos carnavalescos estarem banindo de seus repertórios musicais algumas marchinhas.

Primeiramente, há que se destacar o óbvio: o repertório é do bloco, então o bloco se responsabiliza pelo repertório. Simples assim. Sendo mais específico: você dificilmente verá a execução do hino do Clube de Regatas Vasco da Gama num bloco de exaltação ao Clube de Regatas Flamengo.

Desta forma, se o bloco zela por igualdade de gênero, fenótipo, espécie, escolha afetiva, religiosa ou seja lá o que for, cabe a este bloco selecionar o seu repertório. Se isso soa chocante, acho melhor terminar a leitura por aqui.

(Obrigado por continuar)

Mencionaram quatro dessas marchinhas. Vou opinar sobre cada uma delas e apresentar possíveis soluções não traumáticas.

1. Maria Sapatão

A letra é tão simples, mas tão simples, que substituí-la seria uma tarefa elementar para analfabetos funcionais. Imagine se os responsáveis por essa composição quisessem colocar em evidência um homem heterossexual em vez de uma mulher supostamente homoafetiva.

Teríamos, por exemplo:

João heterozão, heterozão, heterozão
De dia é João, de noite é João.

Lembrando que o fato da Maria ter supostamente preferências homoafetivas no período da noite, isso não gera uma mudança de nome no RG ou a necessidade de emissão de uma nova cédula identitária para uso noturno. Maria continua sendo Maria. Incrível, né?

2. Cabeleira Do Zezé

Na extrema falta do que fazer e no que refletir, não há nada como... cuidar da vida dos outros. Pausa para lembrar que estamos nesse momento na 17ª edição do Bígui Bróder Brasil. Fim da pausa.

Zezé, indivíduo de cabelo considerado grande em suas dimensões aparentes, tornou-se alvo de suspeitas comportamentais absolutamente irrelevantes para o convívio social.

Mas para não ficarmos sem essa tradicional marchinha (seria muito difícil viver sem ela, praticamente uma obra-prima da música brasileira, talvez tendo sido composta por algum pseudônimo de algum gênio do carnaval), vai uma sugestão de adaptação.

Olha a cabeleira do Zezé
Será que ele quer? Será que ele quer?

Será que ele quer deixar grande?
Será que ele já vai cortar?
Parece que o cabelo é dele.
Então é melhor respeitar.

Deixa o cabelo dele!
Deixa o cabelo dele!

3. O Teu Cabelo Não Nega

Considerando que o termo "mulata" seja de origem espanhola (feminina de "mulato", "mulo", indicando um animal híbrido que descende do cruzamento de uma égua com um jumento ou de uma jumenta com um cavalo), não há muito o que fazer. Estamos nos referindo a um vocábulo propositalmente depreciativo, usado em referência aos filhos mestiços das escravas que coabitaram com os senhores (leia-se escravocratas) brancos.

Uma sugestão automática seria trocar "mulata" por uma cor. "Branca", por exemplo.

4. Índio Quer Apito

Evidentemente, índio não faz questão de apito. Índio, em 2017, está mais interessado em simplesmente existir enquanto índio mesmo. Por falar nisso, a Imperatriz Leopoldinense, tradicional escola de samba do Rio de Janeiro, trouxe como enredo neste ano "Xingu - O Clamor Que Vem Da Floresta". E por falar algumas verdades inconvenientes (bem sutis, por sinal), a agremiação foi repreendida por membros da bancada ruralista no Congresso Nacional. É uma boa ilustração para mostrar quem é que manda e quem é que sofre nesse país.

Trazendo um pouco mais de veracidade à marchinha, poderíamos cantar assim:

Ê, ê, ê, ê, índio quer demarcação
Tá na Constituição

Lá no bananal, capanga de branco
Deu no índio uma surra a pedido do patrão
Índio ficou dolorido e estatelado no chão
- Eu não quero violência! Eu quero demarcação!

Provavelmente, essa última marchinha seria banida. Mas não por meros mortais blocos carnavalescos...